"As regras existiam por um motivo: se você as seguisse, teria sucesso; se não as seguisse, talvez acabasse ateando fogo ao mundo."
Autora: Celest Ng
Editora: Intrínseca
Shaker Heights é a comunidade perfeita para se viver. As casas tem materiais, cores e gramados padronizados. As escolas são de alta qualidade, formando jovens inteligentes e bem educados. A comunidade preza pela ordem e se orgulha de ser progressista e ligada aos bons costumes.
A vida da Sra. Richardson gira em torno desses conceitos. Sua família já está há três gerações na mesma casa, e Elena se orgulha de uma vida centrada, organizada, digna de um comercial de margarina. Casada com o homem que conheceu na faculdade, um bem-sucedido advogado, os dois tem quatro filhos e uma condição financeira que os permite viver com muito conforto.
Mia Warren, por outro lado, é uma artista independente, que aluga a casa da família Richardson e se muda com sua filha adolescente, Pearl. As duas famílias acabam se envolvendo de maneiras diversas, e o choque do estilo de vida e valores dos dois lares pode mudar a vida de todos.
"Ela não se importava, percebeu a Sra. Richardson, com o que pensavam dela. De certa forma, isso a tornava perigosa."
É extremamente interessante ver a construção dos personagens nesse livro, pois nenhum deles é unidimensional. Todos possuem diversas facetas e muitas vezes se contradizem durante a história. Comecei a leitura levemente interessada e até um pouco entendiada com as descrições de Shaker Heights e todas as suas maravilhas, mas os personagens me cativaram de uma maneira que não consegui soltar o livro até terminá-lo.
" - Sinto dizer que não tenho um plano - falou, erguendo o estilete. - Mas na verdade ninguém tem, não importa o que diga."
Mia e Elena são personagens extremamente opostos. Elena se orgulha da ordem e das regras, enquanto Mia vive o momento. É interessante notar como a autora se refere a elas na maior parte do livro. Elena é Sra. Richardson, mas Mia é somente Mia. Raramente vemos seu sobrenome ligado a ela. Apesar de Mia não ser uma Sra. X, pois não tem marido, gosto de pensar nisso como uma indicação do senso de individualidade dela, e não da falta de um título.
Um personagem que pouco aparece é o Sr. Richardson, mas alguns momentos, em que ele se pronuncia ou aparece na história, são bastante interessantes. Além do desenrolar entre essas duas famílias, temos também uma batalha de guarda com discussões raciais e sobre o que é maternidade, que me interessou bastante. Podemos defender vários personagens sobre diferentes aspectos, e o livro todo, para mim, é uma grande discussão sobre decisões, julgamentos e morais.
"Ali ela descobriu que tudo tinha nuance, um lado não revelado ou profundidade inexploradas. Tudo merecia ser analisado com mais atenção."
Outra questão que o livro debate também é sobre caridade / boa ações e suas intenções e motivações. Em diversos momentos a riqueza é tratada como uma superioridade inviolável e inquestionável, a ponto de alguns personagens nem pensarem em questões práticas do futuro. A ajuda aos menos favorecidos é tratada como uma obrigação moral, mas que é validada pelo merecimento. Quantas vezes não ouvimos isso na sociedade atual?
"Afinal, eles não era os mais espertos, os mais sábios, os mais atenciosos e prevenidos, os mais ricos e mais esclarecidos? Não era dever deles instruir os outros? A elite não tinha a responsabilidade de partilhar seu bem-estar com os menos afortunados?"
Terminei essa leitura com os nervos à flor da pele. A sensação de querer mudar as coisas, de repensar várias situações do dia-a-dia e sobre como a sociedade funciona é enorme. Amo livros que mexem com os sentimentos de forma tão profunda e que me fazem refletir. Recomendo como uma leitura reflexiva, não só um suspense para saber como a história termina. Acabei o devorando em poucas horas, mas esse livro vale uma leitura vagarosa e contemplativa também.
Quero ver a adaptação, mas espero que consigam reproduzir as sutilezas e situações interligadas que esse livro conseguiu trazer à vida de uma forma tão delicada. E vocês, já leram Pequenos Incêndios por Toda Parte? Não esqueçam de comentar.
Boa leitura!